por Nilo Barreto
O contraste do som incessante de música, pessoas conversando e crianças brincando é a trilha sonora para as cenas que seguem a preparação do que viria a ser uma celebração da cultura e identidade de um povo. Assim se inicia Entoado Negro, um documentário audiovisual que narra o orgulho e a cultura da comunidade quilombola Pedra D’água, localizada no município de Ingá, na Paraíba. A direção foi feita pela jornalista Valtyennya Pires, a partir de seu desejo em contar a história do povo que ela pertence e que raramente é colocado como protagonista.
Natural de Serra Redonda (PB), Valtyennya é mestra em Ciências Sociais, diretora e roteirista audiovisual. A sua história com a cultura quilombola veio antes de qualquer título acadêmico. Em 2013, a então adolescente visitara pela primeira vez a comunidade que, futuramente, seria o centro de sua história e cenário para seus feitos no audiovisual. Naquele dia, 20 de novembro, ocorria os festejos relacionados ao dia da consciência negra em Pedra D'Água. Encantada diante de uma celebração que não era familiar ao seu cotidiano, Valtyennya adquiriu um propósito: "queria mostrar isso ao mundo", foi o seu pensamento.
A primeira oportunidade surgiu em 2017 no Curso de Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), através da disciplina de Documentário Audiovisual. Para compor o Entoado Negro, Valtyennya Pires alcançou suas personagens através de sua rede de afetos. A sua mãe, Marinalva Campos, conhecia Maria de Lourdes, mulheres, agentes comunitárias de saúde e pertencentes a Pedra D'Água. A partir desse contato a documentarista construiu uma ponte até o seu objetivo. Com o suporte institucional e de seus colegas de curso Mayara Bezerra, Daliana Azevedo, Vanessa Garcia e Primitivo Leal, voltou à comunidade para realizar a gravação.
O propósito na produção audiovisual
A jornalista tinha uma finalidade em mente: “Eu queria registrar inclusive, [...] sobre o que eles entendiam pela festa da consciência negra, porque eles festejavam a sua identidade e tinham orgulho da sua cor. Eu queria que eles falassem”. A escolha narrativa tinha como intuito ficar mais próxima dessas pessoas, era falar sobre e para eles. Assim, a documentarista concentrou os relatos de seus registros nas falas de pessoas da comunidade Pedra D'água.
Após a produção, o documentário segue em exibição nas escolas como material educativo, com o objetivo maior de apresentar comunidades quilombolas através do audiovisual. Além disso, a produção também foi objeto de análise em pesquisas de iniciação científica na UEPB e objeto de estudo em artigos científicos, coordenados pela professora e jornalista Cássia Lobão, que comenta sobre a relevância do documentário de Valtyennya Pires ao relacionar com o clássico Aruanda de Linduarte Noronha, feito na década de 1960 e que retrata de temática similar:
“A importância é justamente essa, a apreciação de uma produção contemporânea dentro dessa perspectiva temática, que está na agenda da sociedade, dentre tantos outros temas, que é a reflexão sobre racismo estrutural, sobre representatividade negra, sobre a ancestralidade de pessoas afrodescendentes e assim por diante. E o olhar de Valtyennya a partir desse filme, nos traz justamente uma perspectiva afirmativa, de consolidação da luta contra o racismo.”
Assim como uma de suas inspirações, Aruanda, Valtyennya Pires apresenta uma obra relevante e necessária, e mostra um ângulo interno e pessoal. Descendente de quilombolas, ela viu a oportunidade de se conhecer através das suas produções: “Eu não entendia muito bem sobre a minha raça, sobre a minha identidade, porque eu fui ensinada a não pensar sobre ela”.
Essa identificação proporcionou que Valtyennya construísse uma narrativa sensível. Trata-se da outra versão da história, daquela que poucos estão dispostos a ouvir. Tal movimento tem adquirido cada vez mais força na indústria cinematográfica brasileira, conforme pontua o produtor audiovisual e ativista pelos direitos humanos, Manu Dias, sobre a relevância de obras como Entoado Negro:
“Ainda precisamos falar sobre vários corpos que não foram representados no audiovisual, ou chegam de maneira extremamente caricata. Quando, normalmente, esses corpos são representados por não-representantes destes grupos, trazem uma narrativa 'colonizada', romanceando esses corpos em funções, sempre, de submissão".
Após Entoado Negro, a jornalista voltou a trabalhar com alguns personagens do documentário, desta vez, no curta documentário experimental Quilombola (Orgulho | Respeito| Comunidade), também produzido ainda na condição de estudante de Jornalismo. Com foco nos depoimentos neste curta-metragem, a documentarista abordou as vivências dos personagens individualmente.
Valtyennya também roteirizou e dirigiu, em parceria com Luana Gregório, o documentário Amanhã Vai ser outro Dia. Em meio a pandemia da COVID-19 ela usou de seu olhar artístico para evidenciar a experiência de Elenilda Ribeiro que após perder o marido, vítima da pandemia, assumiu a sua profissão como motorista de transporte coletivo, dentro de um ambiente de trabalho predominantemente masculino.
Registros das produções documentais e atividades escolares com Valtyennya Pires - Foto: acervo pessoal/Valtyennya Pires
Já em Margaridas, igualmente com Luana Gregório, destinou-se ao interior da Paraíba, para contar a história das Agriculturas rurais Giselda Bezerra, Anilda Batista e Josefa Miranda, que se unem a movimentos políticos e sociais na luta por direitos das mulheres e no fortalecimento da agroecologia. Valtyennya Pires ainda atuou como diretora de som no documentário Vitóriarégia: Flor da Primavera, de Vanessa Garcia, que relata a história de Vitóriarégia, ativista cultural do município de Esperança (PB).
Em seu trabalho audiovisual mais recente, Céu, se desloca rumo à Santa Luzia (PB), onde se passa Aruanda, retomando uma de suas principais inspirações e fazendo várias referências ao trabalho de Linduarte Noronha. Neste, ela dispôs da assistência da cineasta Cris Fragoso. Ambas focaram no legado de uma mulher vítima de feminicídio e expondo, também, a cultura de produção de louças da cidade.
O cinema como forma de expressão
Em cada produção, um pedaço da sua vida é exposto, seja pela afirmação de sua identidade ou pela luta por direitos, enquanto mulher e pessoa preta.
“Eu chego para tratar sobre esses temas a partir de indagações minhas, eu ficava me questionando sobre como é que esse povo tem orgulho de ser negro, se sofrem tanto racismo, e na TV, eles não são mostrados. São invisibilizados, não têm escola de qualidade, não têm terra de qualidade, não têm estradas de qualidade”, explica Valtyennya.
Para a composição de uma boa narrativa é preciso estar atento a todas as vozes e visões. A sensibilidade na escolha das suas personagens e na forma como são retratados, mostra todo o poder que sua obra possui. Valtyennya nunca quis seguir as normas, estudou jornalismo com o pensamento de que não queria simplesmente reproduzir o que já era feito, e encontrou, no cinema, seu propósito e, também, a oportunidade de contar sua própria história.
O trabalho de Valtyennya Pires se faz, cada dia, mais necessário. Não somente pela sua relevância social, educativa e representativa, mas pela sua arte. Através de um olhar delicado, ela demonstra a força de ouvir todas as vozes, de deixar as pessoas contarem suas perspectivas, mas, principalmente, de deixá-las entoar, com orgulho, a sua origem.
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Texto: Nilo Barreto
Entrevista e Produção: Nilo Barreto e Julia Nunes
Editor de Especializado: Eduardo Gomes
Editor-Chefe: Rafael Melo
Diretora de Redação: Ada Guedes
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