[...] Eu tenho pra vender, quem quer comprar? Pé de moleque, alecrim, canela... Moleque sai daqui me deixa trabalhar! E Zé saiu correndo pra feira dos pássaros, e foi passo-voando pra todo lugar”. A Feira de Mangaio, de Sivuca e Glorinha Gadelha – e eternizada na voz da sabiá Clara Nunes – já anunciava as relações da infância ao imaginário da cultura popular.
Por considerar a importância da cultura popular na formação de jovens e crianças, o Campina Cultural convidou o Doutor em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Radamés Rocha, para falar sobre esse tema tão discutido e também tão emergente.
O “Rada”, como é conhecido por seus alunos, é professor do Curso de Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de Artes do Governo do Estado da Paraíba. Radamés Rocha também atuou por dez anos no Colégio Pentágono (SP), escola que foi Coordenador de área, professor de Arte, História da Arte e Infoeducação. Nesta entrevista, ele discorre a importância da cultura popular no currículo da educação infantil, no momento em que o distanciamento social se mostra um grande desafio para as famílias, para a escola e para as crianças.
Leia os principais trechos da entrevista:
Radamés, o que caracteriza a cultura popular? Tanto a cultura popular quanto para o folclore são saberes que passam de geração em geração. Eles estão dentro da oralidade, da cultura de tradição oral. A cultura popular se desenvolve no folclore, no artesanato, na música, na dança, nas festas, nas crenças, nos costumes. Por exemplo, na literatura nós temos o cordel. Outro exemplo são as adivinhas, que acabam caindo dentro das brincadeiras populares. Há também os provérbios, os ditados, as crendices como a de não dormir com as mãos cruzadas. São saberes populares, que passam tanto de geração em geração, que a gente não tem mais o registro escrito de sua origem e nem como isso se propagou, por isso que é cultura popular, porque é uma coisa que tem o acesso do povo, das massas e, às vezes, se confunde com o folclore, também.
Em que momento você percebeu a cultura popular na sua infância? Quando eu era criança tinha o compadre de fogueira, assim como eu também tenho minha madrinha de fogueira. [Nesse contexto] Tinha o batismo, um ritual que ocorria porque acreditava-se que a fogueira de São João, como a de São Pedro e de Santo Antônio eram símbolos do sagrado, assim como as flores que são queimadas para Maria no mês de maio. Há também a brasa, a cinza que é sagrada e não se pode jogar fora de qualquer jeito, há todo um cuidado para se desfazer daquelas cinzas. E aí quando você colocava uma brasa da fogueira de São João na água, ela ficava benta, vejam só! Um processo, um ritual que não era necessário ter um sacerdote, um padre ou alguém. Era algo entre os leigos.
Qual é o sentido do brincar para a cultura popular? Olha, hoje como pesquisador eu vejo o brincar na cultura popular como uma questão de resistência, à medida que enfrentamos esse (des)governo. Além disso, as pessoas veem a cultura popular com olhar meio torto, o que a faz como símbolo de resistência e o brincar, na minha pesquisa [do doutorado], tem algumas questões como a socialização, a cultura de pares.
Poderia explicar o que é a cultura de pares? É um conceito abordado por um sociólogo da Infância, o americano Willian Corsaro, que diz que as trocas de informações das crianças, ali entre elas, é o que produz cultura. Começa com o núcleo familiar, elas ouvem e se apropriam do adulto e aí existe um processo de imitação, de mimese. Só que não fica nessa imitação do mundo adulto, eles se apropriam e tem um processo criativo que gera uma nova informação, uma nova visão do mundo adulto a partir da ótica da infância, do olhar da criança. Tanto que Corsaro diz que o pesquisador que queira pesquisar a infância tem que se colocar numa posição de horizontalidade [com a criança]. Isso envolve questões éticas, envolve questões afetivas.
A escola seria uma ponte para trazer o protagonismo da cultura popular ao imaginário das crianças? Acredito que sim. É o primeiro ponto ou, então, os projetos culturais. Por exemplo, gostaria muito que a casa do meu avô, uma das casas mais antigas lá do Muquém, no município de Areia, – que está se deteriorando – fosse um espaço de cultura, onde tivessem fotografias, os registros [da comunidade]. Outra pesquisa que pretendo desenvolver é sobre o tricô artístico, aquele tricô que começa com cinco agulhas e vira um arco. Ali em Areia é muito forte esse artesanato. Veio das freiras que vieram da Alemanha e foi usado para oferecer uma profissão para as mães que existiam ali e que estavam sem emprego, isso há muitos anos. E aí tem as tricoteiras no lugar, queria catalogar as produções dela, os padrões dos tricôs. Precisamos de um lugar que junte tudo isso, que valorize, que fomente, que registre, que cultue, que pratique. Se não for na escola tem que ser em outro local, só que esse outro local não existe. O que tem de mais fácil acesso para construir isso ainda é a escola.
As experiências vivenciadas pelas crianças a partir do repertório cultural local as tornam únicas. Como trazer isso para o digital? Olha, a gente tem que olhar para o digital como um aliado e não como um substituto. Ele tem que auxiliar nas situações [escolares]. Nesse momento de confinamento, de pandemia, todo mundo teve que dar um jeito de fazer acesso a esse mundo digital, mesmo que nunca tenha feito. Ainda assim eu não digo que tem que ser tirado de vez, porque quando pensamos na socialização que a pandemia nos tirou, vemos que se eu corto totalmente o acesso do meu filho ao mundo digital, quando ele for à escola, ou até na rua, ele ficará escanteado.
Por quê? Porque as outras crianças estão envolvidas nisso. Então temos que fazer tudo com muita dosagem, não é uma coisa que substitui a outra, elas têm que ser aliadas. A escola não pode agora investir totalmente no tecnológico e não propor experiências estéticas, experiências sinestésicas para as crianças. Subir em árvore, colocar o pé na areia, brincar de mangueira, sujar na lama, eu não posso deixar isso de lado e agora investir só no digital.
Uma característica bastante comum à cultura popular e à infância é a ludicidade. De que forma você tem experimentado o lúdico em sala de aula? Abrindo a reflexão podemos pensar, inicialmente, que o lúdico, o brincar sozinho é super difícil. Nas aulas remotas do folclore [em 2020] que dei formação e construí atividades com as professoras, nós estávamos lembrando as brincadeiras e íamos descartando, por quê? A famílias hoje são reduzidas. As brincadeiras populares sempre são de agrupamentos. Ainda que a criança esteja com o seu pai e a sua mãe, nem sempre a sua mãe estará à disposição e as possibilidades de brincadeiras ficaram cada vez menores. Quanto a questão do lúdico, do brincar na educação infantil, não há como dissociar. Não se diz que a criança na educação infantil faz ‘arte’ porque quando ela está desenvolvendo uma prática artística, para a criança ela está brincando, quem diz que é uma atividade de arte é o olhar do adulto. É esse olhar que contamina a ação da criança.
Qual foi a sua experiência com o lúdico? A minha maior experiência [com o lúdico e o brincar] foi por meio da contação de histórias. Carrego comigo as memórias da Paraíba e as levo para dentro da minha sala de aula. Fiz isso na minha pesquisa de mestrado falando, por exemplo, de uma fotografia de Luiz Braga, que tinha um [homem] desdentado. Lá no espaço expositivo, eu falei às crianças que minha mãe usava chapa – que é prótese dentária – e que chapa durante mito tempo, lá no Nordeste, foi usada como voto de cabresto.
O político enchia o carro dele com um monte de jovem para pagar o dentista para arrancar o dente. Comentei que a minha mãe não usava chapa porque os dentes dela ficaram cariados, mas, quando acontecia de um dente ficar doente, a sessenta anos atrás, para sair do sítio e chegar na cidade era quase impossível. Então são histórias como essas que, quando eu falava para meus alunos, geravam muitas contações de histórias e relatos pessoais. Eles conheciam outros mundos e ficavam muito mais curiosos em ouvir essas situações do que a da Cinderela ou a da Branca de Neve que eles já conheciam.
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Entrevista: Eduardo Gomes
Produção: Bruna Araújo
Supervisão Editorial: Ada Guedes
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