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CG tem cultura Ballroom

por Raquel Franklin


A cultura é de extrema importância no desenvolvimento pessoal, intelectual e moral de uma pessoa, e principalmente na capacidade de relacionar-se com o outro. É uma forma de salvar e expressar suas emoções através da arte, e com a Ballroom não seria diferente. Ela surgiu no início dos anos 70 nos Estados Unidos, especificamente no Harlem, que foi um bairro geralmente ocupado por afro-americanos, latinos e pessoas transgênero, e que viram através desse movimento cultural uma forma de acolhimento e pertencimento em meio a tanto preconceito na época.


Com a propagação dessa cultura da Ballroom, ela encontrou o seu espaço no Brasil, que está sendo fomentada por todas as regiões do país, e desta vez se abrigou no território paraibano. A arte teve o seu início na Paraíba em 2018 com a criação da House, a Casa da Baixa Costura. As Houses são cruciais, é um conjunto de pessoas que têm como objetivo se assemelhar a uma família, tanto pelo sentimento de afeto quanto de hierarquia, sendo lideradas por mothers (mães) e fathers (pais). Neste ano, a cena chega no interior da Paraíba, com a criação do “CG Tem Kunt”, uma coletividade que tem o objetivo de fomentar a cultura Ballroom.


Cena embrionária Campinense


Jay Império, idealizadora do CG Tem Kunt - Foto: Raquel Franklin - Campina Cultural
Jay Império, idealizadora do CG Tem Kunt - Foto: Raquel Franklin

Jay Império, 19 anos, é a principal responsável pelas articulações do CG Tem Kunt, e faz parte da House of Império, uma casa que surgiu no Rio de Janeiro. Em 2022 a casa iniciou um capítulo paraibano e abriu portas para Jay fazer parte dessa grande família. Ela morava em João Pessoa, mas por questões pessoais se mudou para Campina Grande no início deste ano.


Percebendo que precisava continuar com os treinos de Ballroom, começou movimentos pela sua rede social, convidando pessoas que se interessavam pela cena e que queriam orientação para participar desses treinos culturais. Jay ressalta: “Comecei a fazer treinos de vogue, principalmente vogue femme, e aí através desses treinos a gente foi agregando pessoas, pessoas que já conheciam a Ballroom seja pela internet ou movimentações passadas aqui em Campina Grande que a casa da baixa costura fez”.


A partir dessas iniciativas, uma quantidade de pessoas se reuniram e formaram o CG Tem Kunt, em junho desse ano, juntamente com a sua conta no Instagram, como um apoio para incentivar a cena que ainda é embrionária no interior paraibano. Desde então, são realizados treinos, oficinas, e rodas de conversa toda semana com alternância de locais, que por enquanto são no Cine Teatro São José e na UFCG (Universidade Federal de Campina Grande).


Hoje se encontram mais de 10 pessoas que ajudam a propagar essa cultura, entre elas são: Jotap 007, Luke 007, Chris 007, May 007, Rapha 007, Bea 007, Saulo 007, Luyz 007, Bruxe 007, João 007, Julis 007, Anelles 007, Well 007, Julia 007. Por curiosidade e conhecimento, é preciso dizer que "007" é usado no final dos nomes porque são pessoas que não fazem parte de uma House, são independentes.


Mayara Kaline, 23 anos, conhecida como May 007, está nessa comunidade desde o início e diz a importância dessa cultura na sua vida. "A cultura Ballroom me ajuda em vários pontos, mas especificamente na autoestima e na saúde mental. Depois que eu comecei a fazer parte, além de consumir nas mídias, a minha vida mudou muito. Tenho um motivo a mais para querer continuar, sem exagero, mesmo. Me ajuda de uma forma que nada mais faz, é uma sensação única."


Oficina de Runway com a International Overseer Kitty Império - Foto: Acervo Pessoal


Kiki Ball: A Primeira ball realizada pelo CG Tem Kunt


É importante enfatizar que Ballroom é a cultura, que relaciona várias questões sociais e é uma forma de apoio a Transvestigênere, termo usado para ser mais inclusivo do que a palavra transgênero. Já a Ball, é o evento em que se reune toda a comunidade a fim de mostrar suas habilidades por meio das categorias de rosto, passarela, looks, sensualidade, entre outras. As primeiras Balls realizadas em Campina foram no início deste ano, em janeiro e maio, promovidas pela Casa da Baixa Costura e a Secretaria de Estado da Mulher e Diversidade Humana.


A partir dessas Balls o interesse e a procura dos campinenses a quererem participar dessa cena tem aumentado cada vez mais. Chris Franco, uma das pessoas que propagam a cena em Campina, conheceu o movimento através da primeira Ball de janeiro, e relata sua experiência: "Foi um evento muito massa porque foi meio que uma introdução também, com muitas rodas de conversa sobre a cultura. A partir dessa introdução, eu particularmente tive muita apreciação pela história de ser uma cultura afro-latina que surgiu como uma forma de resistência, e quebra de paradigmas visuais impostos pela sociedade"


Em 17 de setembro foi realizada a CG Tem Kunt Kiki Ball, a primeira Ball realizada por essa comunidade com categorias de Team Face, Runway, Fashion Killa, SexSiren, Baby Vogue, Ota Performance e Passinho. Apesar de ser uma cultura originária dos Estados Unidos, com muitos termos em inglês, no Brasil foram utilizadas outras categorias para agregar a cultura local, como é o caso do Passinho, que são passos de bregafunk e samba.


Kiki Ball realizada no CineTaetro São José - Foto: Julio C/ Raquel Franklin


Um dos termos usados é performar. O verbo é utilizado para descrever como é a participação artística em cada uma das Balls. Mayara foi uma das que perfomaram na Kiki Ball nas categorias de Runway e Passinho. Ela relata como foi participar do evento. "As sensações foram muitas. A Ball não é só sobre caminhar e só estar performando, mas as emoções de ver as pessoas fazendo coisas incríveis e únicas, é indescritível. Mas a parte de estar fazendo parte da performance, de caminhar, me deixou muito nervosa, mas me deixou também com muita vontade de caminhar mais vezes e aprimorar o que eu sei."


Não só as pessoas que performaram, mas quem pôde prestigiar, conseguiu ver o quão especial é. Particularmente, tive a oportunidade de ir, e consegui notar que o importante não era quem performava melhor, quem tinha os melhores passos, ou o melhor look, mas o que todos podiam fazer de acordo com suas habilidades. Apesar de ter tido ganhadores, todos se mostraram felizes com as performances de cada um, torcendo e elogiando, assim como uma grande família que acolhe uns aos outros.


A Jay como idealizadora do evento juntamente com AJURCC, Cineteatro São José, Funesc e Secretaria de Estado da Juventude Esporte e Lazer, conseguiram realizar o encontro de forma gratuita e com o intuito de apoio a essa cultura na cidade. Através dessa Ball a expectativa para que a cena cresça é grande, que as pessoas que estiveram lá possam não só participar desses eventos maiores, mas que possam buscar conhecer melhor a Ballroom e participar das oficinas, rodas de conversas e treinos que a comunidade oferece.


Uma luta além da cultura


“A gente não tem muitas praças movimentadas por pessoas como nós, é muito reacionarismo, muita violência, e já tivemos experiências assim. Aqui em Campina Grande o nível de violência, de assédio, de brutalidade é muito grande. Então achar espaços públicos em que as pessoas consigam nos ver, que estamos dançando vogue e ao mesmo tempo segures é uma dificuldade muito grande que a gente tem visto”, enfatiza Jay Império.

De acordo com dados publicados pela Antra, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, em seu relatório anual revela que o Brasil é o país com o maior número de homicídios de pessoas transexuais. Segundo essa mesma pesquisa, 131 indivíduos foram levados a óbito no ano passado, sendo a maioria das vítimas com a faixa etária de 18 e 29 anos. A transfobia é todo e qualquer tipo de preconceito com Transvestigênere. Esse tipo de propagação de repúdio de ódio vai além da violência física e verbal, mas também diz muito sobre a falta de oportunidades.


Campina Grande, apesar de ser uma cidade em desenvolvimento, com indústria, comércio e ensino superior, não deixa de ser uma cidade de interior e que ainda é construída de conservadorismo. A fala da Jay, como uma mulher trans, evidencia as dificuldades que a comunidade LGBTQIAPN+ ainda enfrenta nos dias de hoje, e principalmente na cena campinense. A Ballroom em muitos lugares do mundo consegue salvar a vida dessas pessoas em estado de vulnerabilidade, tanto no auxílio em conseguir renda financeira para sobrevivência em sociedade quanto de ajudar a se entenderem enquanto identidade pessoal.


Infelizmente, o município de Campina ainda possui dificuldades para a propagação desse movimento cultural, apesar de ser considerada uma cultura urbana assim como o Hip-hop, os impasses para conseguir espaços é um dos problemas enfrentados. Jay ressalta: “Em várias capitais a comunidade Ballroom consegue adentrar em espaços como pubs, para conseguir trazer as Balls e fazer articulações maiores com outras figuras, mas aqui em Campina Grande é muito elitizado. Além disso, a valorização dessas culturas ainda não possui o investimento que deveria ser dado a devida importância."


Por fim, a cena campinense tem uma estrada longa para o desenvolvimento dessa cultura no cenário, mas que com o tempo será consolidada e vista, podendo acender a chama nas pessoas e de terem a chance de serem salvas e trazerem mais pessoas a se auto conhecerem.


Jay finaliza revelando o seu maior sonho: “Primeiramente consolidar nossa cena, criar referências e pessoas na categorias e em cada parte da Ballroom, que a gente consiga ter autonomia para fazer nossas coisas. Que a gente consiga ter visibilidade desses mecanismos estatais, e públicos que possam servir para promover não só a cultura mas a igualdade, uma política pública de vida, para gente que é Transvestigênere e que é salva pela Ballroom”.

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